domingo, 2 de dezembro de 2007

QUAL A DIFERENÇA ENTRE A FADIGA E A EMBRIAGUEZ?

A Ciência, mais uma vez, avalia a fadiga
Baseado num artigo do Capt. Gavin McKellar - Chairman of IFALPA Accident Analysis Committee

Recentemente, mais um grupo de cientistas, agora australiano, fez uma pesquisa focada nos efeitos da fadiga sobre o ser humano, a qual foi publicada pela Revista TIME. O trabalho constatou que qualquer um que tenha que se manter acordado por 18 horas ou mais atinge um estágio de cansaço tal que passa a ter reações semelhantes a de uma pessoa em estado de embriaguez. Esta situação, transportada para a vida de um tripulante de vôos de longo curso, que seja casado, que tenha filhos menores em idade escolar e que seja responsável por inúmeras tarefas caseiras, torna-se alarmante.

Vamos tomar como exemplo, um piloto internacional que se enquadre no perfil acima descrito e tenha que acordar às 06:00h para levar seu filho ao colégio e permaneça o restante do dia cumprindo afazeres familiares até a hora de sair de casa para tripular um vôo intercontinental, o que normalmente acontece no início da noite.

Considerando que não haja a bordo um ambiente adequado ao repouso, com algum nível ruído e sem uma autogerência eficaz do descanso, feita pelo próprio piloto em questão, ele chegará à Europa ou aos Estados Unidos, após mais de 10 horas de trabalho, e quase 24 de privação do sono. Nestas condições, ele fará parte de uma tripulação que efetuará uma aproximação de precisão em um grande aeroporto, freqüentemente congestionado e algumas vezes sob chuva e neve, totalmente entregue à fadiga e enfrentando condições operacionais desafiadoras e requerentes de uma coordenação físico-mental equilibrada. Segundo o citado estudo australiano, um indivíduo chega neste momento sob condições semelhantes às provocadas pelo estado de embriaguez, sem ter bebido sequer uma gota de álcool. Chega por puro cansaço!

Será que este cenário não é relevante o suficiente para que a indústria leve mais a sério a questão da fadiga no transporte aéreo como fator de ameaça à Segurança de Vôo? Indiscutivelmente, ele o é. E por que não se faz nada? Possivelmente por implicar em novos investimentos relacionados aos lugares reservados para o descanso dos tripulantes a bordo, tornando-os mais adequados, e por ter que se repensar o número de membros das tripulações de longo curso.

Há vários artigos publicados a respeito dos efeitos adversos da bebida alcoólica para a condução de veículos automotores, do stress e, da mesma forma, da fadiga em todos os segmentos do transporte. Todos eles encorajam-nos a agir pró-ativamente na gerência destas questões no dia-a-dia profissional dos que lidam com esta atividade. Afinal, prevenção nunca é demais para a segurança operacional, especialmente quando o assunto é fadiga, dizem nos quatro cantos do mundo os médicos e os cientistas especializados na matéria.

Contudo, não há qualquer movimento pró-ativo e transparente no meio aeronáutico que nos leve a crer que a fadiga passe a ser considerada fator impeditivo para o envolvimento de tripulantes sob esta condição nas operações aéreas. A bem da verdade, este assunto é tão importante que não deveria ser unicamente de responsabilidade dos tripulantes. Pela sua relevância para a Segurança de Vôo, esta responsabilidade deveria ser compartilhada também pelos administradores das empresas aéreas e pelas Autoridades da Aviação Civil, de forma eqüitativa.

Um estudo baseado no banco de dados do Sistema de Reportes de Segurança da NASA revela que a fadiga pode ser considerada causa subjacente em inúmeros incidentes e acidentes aéreos, por ser comumente identificada nestes tipos de reportes.

É certo que a NASA possui o Alertness Management in Flight Operations Report e a AIRBUS o Coping with long range flying recommendations for crew rest and alertness publication. Por que será que estas duas instituições, pra lá de reconhecidas e respeitadas, preocupam-se com o descanso e com o gerenciamento do Alerta Situacional dos indivíduos que voam? A resposta é que, apesar da indústria de aviação proceder a uma resistência invisível para reconhecer a necessidade de se encarar a fadiga como fator de Segurança de Vôo, alguns dos seus segmentos o fazem indiretamente tentando passar instruções aos aeronautas e aeronavegantes para que eles possam gerenciar melhor o seu repouso e as suas condições físico-fisiológiocas para que o Alerta Situacional não seja comprometido durante as operações aéreas. Para mim, é o reconhecimento informal de que a fadiga traz riscos adicionais ao vôo. Falta uma pressão política maior da Comunidade de Segurança de Vôo para conquistarmos o reconhecimento formal.

Os detentores do poder gerencial na aviação devem ser evocados para discutir mais profundamente a matéria, inclusive utilizando os tripulantes como fonte de informações fidedignas para extrair deles todos os dados que possam auxiliar no banimento do estado de fadiga como ameaça à segurança das operações de vôo.

A identificação e o gerenciamento dos riscos no sistema de aviação são aspectos importantes para se garantir uma operação segura. Por isto mesmo, não é adequado o suficiente deixar somente nas mãos de um tripulante o julgamento dos riscos que ele pode agregar a um vôo por gerenciar inadequadamente a sua vida pessoal e o seu descanso. Há que ser uma ação coletiva.

A última dimensão do seminário CRM - Crew Resource Management, através do modelo TEM – Threat and Error Management, procura ensinar a importância do gerenciamento do erro humano e de suas ameaças. Erros ocorrem comumente, mas felizmente somente em algumas ocasiões eles fazem parte da corrente que leva a um acidente, na maioria das vezes por uma falha da equipe de vôo em gerenciar seus próprios erros e as conseqüências decorrentes deles. E a fadiga, por aumentar a probabilidade da incidência de erros humanos, ameaça o reconhecimento destes erros e a oportunidade de mitigá-los.

A privação do sono compromete de tal maneira o raciocínio lógico que o descanso passa a ser uma prioridade tão alta para o indivíduo que qualquer outra atividade que ele esteja fazendo torna-se secundária. E este é o momento de maior ameaça à Segurança de Vôo, quando a fadiga ocorre durante uma operação aérea. Dormir, nestes casos, passa a ser uma questão de sobrevivência. E frente a isto, nada mais importa, passando a ser impossível evitar o desligamento mental das atividades que estejam sendo praticadas.

Divulgam-se muitas estratégias pessoais para que os pilotos gerenciem o seu próprio sono, apesar de, no meu entendimento, todo o sistema de aviação necessite se envolver com esta questão para que a Segurança de Vôo seja privilegiada e haja aderência de todos os envolvidos com as melhores práticas para se evitar a fadiga.

Além disto, o órgão regulador deve assegurar regras claras que sirvam de base para o sistema conhecer como minimizar ou eliminar as conseqüências da falta do sono, auxiliando na construção de uma cultura preventiva relacionada com esta matéria.

O Dr. Robert Helmreich, psicólogo da Universidade do Texas, nos EUA, e chefe da área de pesquisa em Recursos Humanos na Aviação, diz que nas operações aéreas os erros não podem ser investigados somente como falhas humanas, tais como deslizes cognitivos e lapsos de identificação de situações de perigo, como o Professor James Reason, notável psicólogo especialista em aviação da Manchester University, da Inglaterra, cansa de abordar. Na verdade, diz o professor, os erros também (às vezes, principalmente) são decorrentes de problemas de manutenção, de excesso de trabalho imposto pela administração das empresas aéreas, de outras questões organizacionais, de agentes externos, do controle de tráfego aéreo, além da fadiga. Ele afirma que sempre há fatores latentes inseridos nos erros ativos. E tem razão.

Finalizando, quero dizer que a fadiga é um fator importantíssimo em qualquer tipo de atividade, mas no setor de transportes, especialmente na aviação, ela é tão grave que deveria ser apreciada com a constância e com a seriedade que uma ameaça à Segurança de Vôo, que ela pode se tornar, pede.

Espero que a Autoridade Brasileira de Aviação Civil passe a exigir do Sistema de Aviação seminários, congressos e workshops em número suficiente para que este assunto jamais deixe de fazer parte das discussões, tornando-se tema permanente no seio da Comunidade de Segurança de Vôo.

E a comunidade brasileira de Safety precisa pressionar mais para que as coisas aconteçam. Mudar esse quadro é fundamental.

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